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É cedo, uma mulher de óculos pretos I Don´t See pendurada num rapaz tatuado na Knife And Cutlery Building Tattoo Academy de canadianas com amortecedor e ele nela vestidos como a fortuna saem de uma das entradas do complexo habitacional cinzento como o vazio num passo lento e arrastado num espírito de entreajuda só ao alcance de uma vasta natureza pop de um mundo reduzido ao pimba, agarrado ao presente para não morrer. Do lado esquerdo na mesma rua uma mulher grávida retira o gradeamento protetor da montra do café onde esperam dois homens mortos pelo sinal de morte do mata-bicho servido pelas mãos de pedra e cal, de trabalho da mesma mulher. Pendurados no gradeamento do parque infantil encontram-se dois costumeiros mirones madrugadores reformados numa acessa cavaqueira de beatas macaqueadas em segredo. Começam a chegar e a parar os primeiros automóveis junto à escola primária onde todas as manhãs de segunda a sexta feira são depositadas esperanças. Do prédio em frente ao de onde se encontra o narrador sentado contemplando este mundo integrado globalizado onde se morre isolado sai uma bonitona despachada de cabelo ruivo blusa azulínea aos círculos da mesma cor num tom mais forte, mais carregado, calça justa verde e sapatilhas Reebok Superstar Multix prateadas de cigarro na mão nariz empinado com tiques de ironia importância e presunção avançando a passos largos na direção do final da rua super satisfeita com o dividendo do roubo da noite passada e com o look fantastic de woman das cavernas. Ouve-se a buzina da padeira, mulher nova e loira sem adereços concentrada simultaneamente no botão da trombeta, instrumento sonoro do veículo e na condução da comercial Peugeot Partner tão necessária ao transporte de pão a estacionar. Uma mulher em vestido de dormir branco com flores roxas e fitas segurando o decote canoa alargado pelos ombros aproxima-se da entregadora de pão e surge uma outra de avental azul marinho com bolso central e laços ajustados ao pescoço e à cintura sobre trapos chineses de saco na mão, a primeira esboça um gesto desvairado, conflituoso, a segunda ri-se num tom de escárnio e provocação deixando emojis vermelhos no ar. Por detrás duma janela sem cortinas e persiana levantada uma mulher entra na divisão enrolada numa toalha, tira a toalha, veste umas cuecas pretas, seguidamente encaixa o soutien preto nas mamas, aperta-o, veste uns collants opacos uma blusa e uma saia plissada, um homem entra no quarto, tira notas da carteira e entrega-lhe o dinheiro, a mulher agarra no dinheiro leva a mão ao soutien esconde-o de possíveis patifes pega nos sapatos e desaparece. Ao fundo da rua, numa das entradas deste complexo habitacional uma mulher caminha em direção à instituição situada ao lado da escola primária, mulher, diz-se por cá, para dominar um trator, vai abrir o portão da associação de solidariedade social tão fundamental para o alívio, para o acalmar da ansiedade e do estômago de tantos contemplados pela sorte desgraçada fragilizados pela vida disléxica competitiva de um mundo feito, desigual, o que faz de segunda a sexta normalmente por esta hora, mulher promessa independente o suficiente para deixar mãos leves de fibra sintética mordendo a língua com terra na boca, cortando velhos tecidos mais que bisturis e velhas malhas com vicissitudes de mármore há muito instaladas num mundo de reis que tão mal teem tratado rainhas, e esta, rosa encarnada perfume limão, diria, é como o narrador, que está careca, ao contrário do leão bebé prepotente de mala ao ombro Louis Vuitton fabricada no meio oculto do contrabando a quem o trabalho faz mal a descer a mesma rua na vanguarda da pedra de um mundo desportivamente parado em mil oitocentos e trinta e um sorrindo para a selfie para mais tarde recordar, tanto o olhar para o lado envergonhado como o triste feliz a enganar a vida e as criaturas que nunca reparam no rapaz do BMW sem cu para as calças do fato de treino 3-Stripes Primegreen Adidas preto e boné cinza Nike Aerobill Running pala curva na cabeça diminuída que se apresenta todos os dias como um bom caixeiro arreigado às mesmas horas do dia com ou sem a namorada, precocemente grávida, entregue por interesse à fuga, rendida aos dezasseis à submissão de um amor amargo que se esconde unicamente nos dividendos ilegais divididos entre os bolsos direito e esquerdo como num filme socioeconómico muito pimba exclusivo para animais servidor de inocentes delinquentes e tantos outros viciados em vícios ocultos que acorrem obstinados ao local do crime como a uma romaria má de ver onde se serve carne de porco e vinho martelado sem um pingo de vergonha até serem presos por denunciarem o abuso do cão do homem da entrada dez segundo esquerdo que tanto bebe água-benta como rás e que mal sai da porta zás dá para trás. Neste complexo suburbano, de betão cinza medieval com hábitos e costumes, envolto em armações a morte é uma assídua sedutora gueixa campeã pintada num caroço de pêssego dando horas a quem o tempo roubou a beleza tal como a este lugar onde todas as entradas são saídas e onde a maioria se cumprimenta respeitosamente de faca nas costas e todas as folhas voam como o tempo impiedoso que não pára, precisamente, este é um lugar lindo de morrer como tantos outros que me espantam, dos que pregam a moral dos moribundos, dos invisíveis, esguios, que ninguém quer saber, que nem interesse para mais demonstra como o poder que se esquece da educacao e cultura ao qual o vazio tem rendido fortunas e dores de cabeça, e contudo, pelas luzes que apagaram, diria... há festa na morgue.

Celine, A Morgadinha de Valboa, Alberto Moreira Ferreira