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Quando Francisca o reencontrou através da rede social Facebook, os seus olhos surpreendidos encheram-se de um brilho agradavelmente bonito. Amava-a há tanto, que, imediatamente se esqueceu da idade e do cansaço da existência que lhe havia subtraído a luminância dos olhos.

Sim, Francisca é a mulher por quem Pedro desde tenra idade se sentiu encantado, e se viu naquela época, verdadeiramente apaixonado.

Apaixonara-se por ela num dos corredores da Escola Industrial e Comercial de Gondomar antes ainda das ex à primeira vez que a vira. Francisca não é uma mulher como as outras, a sua doce expressão desafiadora, o seu esplendor, a sua voz harmoniosa, a sua presença estimulante, são características que abrem uma porta de libertação para o infinito a qualquer sonhador de bom gosto. Constatou-o depois de se terem enamorado, depois dos afetos partilhados à luz da noite, e que os dois teimavam em dizer que era a do primeiro amanhecer, todos os dias nos intervalos ou após as aulas, sem que, contudo, tivessem tomado consciência do momento ímpar que estavam a viver.

Na época despontava um tempo de loucuras. Francisca mais mulher que ele homem, mais madura e definida que Pedro a crescer depois de perceber a sua imaturidade decidiu que Pedro seria somente o seu primeiro namorado e o romance dissolvera-se pouco mais de uma dúzia de meses depois. Como eram demasiado novos nenhum dos dois reparou que os corações batiam para o mesmo lado, e os seus caminhos assim se separaram por muitos e muitos anos, ocupados nas vidas que empreenderam cumpriram e respeitaram escrupulosamente até ao fim.

Naquele dia em que, francamente, o destino fez com que se reencontrassem, Francisca ressuscitou o amor que Pedro sentia por ela, até então em segredo, e à data adormecido.

E aqui começa um drama.


Do outro lado da cidade:

Beatriz veio de Londres passar uns dias de férias a Portugal, terra que a viu crescer, e visita Lucas, o seu grande amigo de infância.

A campainha toca, Lucas abre a porta...

Beatriz:
- Boa tarde, como estás?

Lucas:
- Bem, obrigada. Tu... és tu! Não acredito! Estás óptima, bonita! Como...

- Tu também, que fizeste ao cabelo?

- Entra, não me olhes assim.

- Há quantos anos... continuas bem parecido.

- Quase não te reconhecia. Estás uma mulher. Mas como é que me encontraste?!

- Bom, estive na nossa terra, disseram-me que vivias aqui e...

- Senta-te. Vou fazer um café. Mas diz-me, o que é que tens feito da vida?!

- Bom... tanta coisa meu amigo. Estou cá de férias, atualmente vivo em Londres.

- Não!

- Sim, é verdade. Pareces triste!


Dois reencontros entre vidas debaixo do mesmo sol, sob as mesmas estrelas, na mesma cidade.


Na mesma cidade, num outro destino, dois amigos, Joaquim e José, encontravam-se num bar em amena cavaqueira.

José:
- Tu amas a..., a…, a…! Olha que… e logo a… porquê a...! Bem, não será difícil imaginar! Escolhes sempre o mau caminho, o mais árduo.

Joaquim quase se engasgou, algumas gotas imergiram-lhe imediatamente dos olhos lançadas pelas glândulas lacrimais, que, tossindo tentou disfarçar.

Joaquim:
- Qual quê! Porra, a cerveja está quente. Que estás para aí a dizer… eu não amo ninguém.

- Vai enganar a mouca. Claro que não estás perdido, enfim, foste só bafejado pelo cupido.

- Olha… tu estás bem! Não amo nada, nem aquela nem outra, mas que ela tem um sorriso estonteante tem, o mais bonito sorriso que… dela não quero nada senão a amizade. Achas que não percebo as diferenças, a circunstancia, as diferentes realidades, achas que não respeito distâncias!

- De fato, distâncias é contigo. Quantas vezes já foste ao fim do mundo?! Devíamos ir embora.

- Vou pedir outra cerveja, não tenho ninguém à minha espera. Bebes?

- Sim.

- Claro que ela é uma mulher…, e é tão simples, gosto da sua simplicidade, aquela simplicidade não é uma simplicidade comum, além disso é uma rapariga decente, uma mulher respeitável, lá terá as suas fragilidades, mas é uma senhora… já não se vê muitas assim, talentosa, de uma vida…

- Ab amicis honesta petamus…

- Lá estás tu a rezar… muito gostas de te massacrar.

- Estás bonito estás. Reconheces ao menos o teu caminho, onde te encontras… que absurdo, que tens tu para dar que possa fazer uma flor daquelas, uma rainha, feliz!

- Vai à merda, não me lembres o tempo…

- Agora pareces assustado!

- Cala-te. E tu, alguma vez pensaste no futuro?

- Com que então levaste com a flecha!

Joaquim não respondeu, quando parecia que se ia passar levantou-se calado e encolhendo os ombros dirigiu-se à funcionária do estabelecimento a passo largo enrugando a testa um pouco corado a ferver diria como se tivesse sido incendiado a quem pagou a despesa da mesa sete e saiu endereçando num sólido tom uma boa noite a José ainda sorridente sepultando o resto da cerveja à pressa no estomago que o seguiu multiplicando-se em desculpas. Joaquim evitando-o caminhou acelerado com ar imperial, cara de poucos amigos e afastou-se sem lhe dar resposta.

Sob a pele daquela figura angustiada desprovida de alegria, pela situação delicada, e pelo medo do mal que tal rumor se deitado por José ao ar da freguesia provinciana onde ambos viviam pudesse fazer àquela mulher, com quem diariamente privava profissionalmente, encontrava-se um coração sensível.


Voltando ao drama de Pedro e Francisca:

Que diabo! Recomeçaram por uma boa amizade, mas depressa se manifestaram encantados um pelo outro diante as janelas a quem uma porta se abre em segredo. E esse foi o principio do fim.

Pedro não conteve o bater forte do seu coração e certo dia acometido por um fio corajoso resolveu declarar o seu amor a Francisca, novamente, e agora finalmente após tantos mundos de duas vidas deixadas para trás.

E no início imbuídos da elasticidade, do espírito do amor, tudo funcionou perfeitamente.

- Lembrei-me quando éramos adolescentes, quando os nossos olhos eram de uma magnificência extraordinária e não tínhamos ainda de que nos queixar.

Francisca foi sempre uma mulher fascinante e conserva ainda nesta altura a docilidade de Maria nos seus olhos azuis amendoados e no rosto um ar terno, e querido de menina.

- Realmente…

E assim se enamoraram novamente, e assim se mostraram perdidos, e assim namoraram durante todo o verão.

Recordaram os momentos mais cintilantes ocorridos entre eles há muitos anos vivendo de novo no leito do momento mais grandioso do amor numa ardente e intensa paixão, apesar dos inúmeros quilómetros que os separam.

- Bom, Francisca é uma mulher lindíssima, e nem as leves mudanças operadas pela idade lhe retiraram o charme, a transparente ternura, agora somado à beleza de uma mulher adulta, edénica, tal a poesia. Ela é o paraíso.

Como aceitou ele ser dominado pelo coração! Inocente. Vivia afogado numa pálida vida dias pesados em que mal conseguia sobreviver, mas tal o guerreiro, admiravelmente transcendente, sempre combateu a morte, e convenhamos, para alguém sonhador nada melhor que o amor, o divino, o verdadeiro amor.

Sempre que fechava os olhos o sonho era sempre o mesmo, e era como se entrasse em transe sempre que falava com ela. E falavam-se diariamente. Tanto ele como ela quando inquiridos recusaram falar dos momentos mais íntimos, compreensivelmente, no entanto sempre foram dizendo…

Ela:
- Ele, fez-se homem e tornou-se num louco… é como um pleno sol que nos enlouquece, e é meigo, enche-me de… desejo, faz-me sentir mulher, princesa.

Ele:
- Ela é viva, mulher ampla, luar de ninfa, de abrasar, mais brilhante que um perfume obsceno. Sim, uma verdadeira princesa.

Do outro lado da cidade os dois amigos Beatriz e Lucas tanto multiplicavam sorrisos como expressões de espanto numa toada de bom humor.

Lucas:
- Não, tenho tido uma vida tranquila, mais ou menos parecida com a morte, e não sei muito bem o que fazer com esta solidão...

Beatriz:
- Pede à vizinha dois dedos de conversa.

- Estás bem?

- Sim, obrigada.

- A mulher tem medo. E depois ela precisa dos dedos. Não tens saudade de onde morávamos?

- Já não tenho lá ninguém.

- Nem eu, e cá, nesta terra todas as portas estão fechadas.

- Isso é ridículo.

- E há montes de vazios.

- De facto, esta cidade parece meia adormecida, mas tu...

- Deve ser da idade, ou da aparência mais urbana.

- Com essa idade é como se estivesses na primavera de novo.
E este lugar é... uau

- Exatamente, o problema é que... Amor...
atirou Lucas...


No caminho para casa, a uma dezena de metros da entrada onde vivia, Cecília esperava por Joaquim fumando um cigarro escondida numa das sombras entre os candeeiros com luz amarela da rua, olhando em todas as direções. Joaquim encontra-a no caminho:

Joaquim:
- Que estás aqui a fazer?!

Cecília:
- Estou à tua espera homem de Deus.

- Eu não sou de Deus nem de ninguém. A esta hora… não podias ter avisado que vinhas!

- Que queres… e tu, que andaste a fazer até agora?

- Que tens tu com isso! Estive a beber um copo com o José. E já me chateou quanto baste. E juntos encaminharam-se para o apartamento de Joaquim.

- Vou fazer chã…

- Faz para ti, tens tarte no frigorifico.

- Estás apaixonado por mim?

- Outra! Que conversa é essa agora!

- É que esta tarde também estive com o José, perguntei por ti, disse-me que andavas esquisito, com olhar de cão meloso e eu…

- Estou a ver, esta noite aborreceu-me com a mesma conversa. A propósito, por acaso não caístes os dois nas costelas da teoria da conspiração pois não?

- Estás ou não estás?

- Pára lá com isso. Sabes que venho do inferno e não quero lá voltar nem tenho mais idade para essas coisas.

- Estás a ser injusto contigo, tens sido gentil meigo e carinhoso comigo e não percebo porque ficaste assim de repente. Tens outra?

- Outra! Como outra! Olha outra… eu não tenho ninguém, e não tenho de te dar satisfação, nós não somos comprometidos, já falamos sobre isto, além disso tenho medo da crueldade das pessoas, muito medo, não quero voltar para o inferno e ponto final.

- Pois eu cá acho que o José tem razão, apaixonaste-te por alguém e não admites ou não queres dizer.

- Pronto, tens razão, acontece que aconteceu o impensável, mas tu não conheces, é uma… humm hígida sardenta de porcelana valiosa tão bonita delicada cheia de graça tão doce tão… tão… uma dúzia de anos mais nova tão… 

Cecilia empalideceu. 

…calma, não vou cometer nenhum crime.

- E nós? Retorquiu Cecília.

- Nós! Quais nós! Não há nós! Nós somos amigos, bons amigos. Podes continuar a cá vir. Claro que… o indomável intimismo terá de acabar.

- Não sei… continuamos amigos, mas esta é a última noite que durmo cá.

- Ok. Compreendo. Desculpa, não queria que isto tivesse acontecido, e não vai acontecer nada entre mim e ela, este amor é impossível, não é lógico, enfim, como se houvesse lógica num coração, mas jamais se poderá materializar.

Uma vez mais Joaquim não conteve a água morna que lhe saiu dos olhos, mas desta vez derreteu, abraçou Cecilia e derramou lágrimas como uma criança inconsolável a quem se lhe tira o doce desejado que nunca teve e queria.

- Não te vou dizer que estou propriamente feliz, mas vá lá, não te posso acusar de não seres honesto, e depois, dizes que tens uma pedra no lugar do coração e desfazes-te no meu ombro! Vou fazer o chã e tu meu grande infeliz vais fazer-me companhia.

- Só bebo se for com cianeto de potássio ou C21H22N202

- Estás todo perdido!

Joaquim pegou numa toalha branca, cobriu a mesa, colocou a tarte de maçã que havia feito no dia anterior e duas chávenas médias no centro da mesa e sentou-se. É um homem marcado pelo sofrimento, pela desilusão, pelas muitas armadilhas do destino à revelia do esperado, no entanto, traz ainda consigo um coração generoso, bondoso, talvez vermelho exigente, vermelho proibido, vermelho cansado, e ao mesmo tempo ousado, apaixonado, desviado, mas rico, coração que o martiriza, com que se debate contradizendo-o dizendo-se: eu não amo ninguém, o amor nem existe.



Corresponderá o desejo de Pedro e Francisca despontado pela paixão que voltou a despertar entre eles a um futuro juntos sob o signo de um grande amor, e até quando novamente?

O auge do bonito e intenso romance, até aí em crescendo, deu-se em Agosto e perdurou até meados de Setembro quando ela teve de se deslocar subitamente à sua terra natal numa viagem relâmpago para acompanhar o seu saudoso pai à última morada, vendo-se por isso forçada pelas circunstâncias a finalmente colocar os dois pés no chão, num de todo, real.

Francisca tinha um companheiro, e com ele uma relação, embora adormecida, em stand by, fria e sem amor, disse-lhe ela certa vez, mas ainda assim um compromisso. E quando ele se preparava para mais um desejado reencontro físico, ela desaparece por breves dias voltando ao país de acolhimento dias depois sem cumprir o acordado antes da súbita viagem.

Pedro percebeu que o motivo que impedira tal acontecimento não se prendia com a fragilidade emotiva proveniente da dor pelo falecimento do seu querido pai.

Ambos são oriundos de famílias humildes da mesma terra. Ela, menina ambiciosa, toda de um trato muito fino e educado. Ele, também, homem culto romântico e sonhador, porém ainda um pouco imaturo e a viver uma fase de privações, incomoda, profunda, a seu ver passageira, perfeitamente transponível, à qual não dava mais que a devida importância.

- A sede de viver é uma coisa…

É impressionante como a natureza de Pedro se assemelha à natureza lírica, à grandeza humana dos poetas, e a vida dá sempre azo a tudo.


Talvez nem Deus saiba dos encontros desencontros e reencontros da humanidade.

Beatriz:
- Não gostas de viver aqui?

- Gosto, mas não gosto de estar sozinho. Se não fosse nem sei porquê...

- Como assim, continuas tolinho; tomara muitos... tens tudo...

- Nem sei se isto é uma vida pobre se é uma pobre vida. Oh, já não sou fotogénico.

- Agora pergunto eu, tu estás bem!

- Não sei, acho que já nem sinto calor, e nem estou a falar de sexo...

- Acho que... bem, tirando esse detalhe...

- É mais que isso, faz-me falta carinho.

- Porquê?

- Sei lá.

- Olha este lugar magnifico, o por do sol no rio...

- O rio, a música, a escrita...

- À noite abres um vinho...

- Sim, tens razão.

Lucas interrompe, dirige-se ao móvel, tira dois copos e seguidamente pergunta: bebes whisky? Beatriz acena positivamente.


A vida e seus pares…


Na manhã seguinte Joaquim refletiu no desabafo da noite anterior: o que há de errado comigo - será o meu coração disléxico! E é assim que um breve monólogo entre Joaquim e Joaquim acontece.

- Despe coração, despe tudo, despe este amor impossível.

- O coração não distingue a linha da sombra e alguns amores são delírios.

- Não deveria o amor ser salvação!

- E então, que pensas fazer para além de te entregares à obsessão da fuga que te há de ditar o fim entre risos sorrisos amarelos e copos às cores mais cedo que o previsto. Vais atrás dela?

- Humm

- Não me digas que agora também és aleijado! Muito bem. Entre um e outro cativeiro vais-te fechar no quadrado sem pernas todo sentimental coitadinho do ranhoso a sonhar com a menina do coração sem pelo menos tentar…

- Vê lá… não gosto que fales assim comigo.

- Ai não posso falar assim comigo! Que pena tenho de ti aí nas ruinas… de mim! Ai desgraçadinho.
A primavera já foi há tanto, e dela, resta-nos a suspeita de que tudo poderia ter sido diferente. Guardas um sonho e nem o caixão para te enterrar podes pagar, e ainda assim continuas apanhadinho imaginando um milagre, ou então, dás um chuto no abismo, farás a terra voar e um dia destes ela cai-te nas mãos. Não queres que te compre duas ou três barbies para brincares às vezes pois não! Vou preparar o almoço.

- Como é que consegues ser tão frio!

- Hoje temos coelho para o almoço, logo grelhamos um peixe e depois se quiseres vamos às putas.

- Não são putas, são trabalhadoras do sexo, muito embora a meretriz prefira o nome feminino prostituta, mas não é disso que eu preciso. Não achas que os dias faziam-nos maiores se fossemos além do corpo, do calculismo, das facadas da economia, do chão pútrido da realidade… ainda estás vivo? Belisca-me.

- Que mal fiz eu para merecer isto!

Chegada a noite, sem a visita de Cecília o silencio desprovido de calor amarra Joaquim ao apartamento distante da realidade vivida perto de se perder. Da cabeça pingam-lhe pensamentos impossíveis de parar, desejos diria impossíveis de realizar, como o daquela cuja magnitude da beleza arrebatou o seu coração, e cuja natureza admira, tomado por uma febre, pela vontade de respirar o seu aroma, tocar o seu esplendor, e viver o mais bonito romance dos romances, que os homens desconhecem, muito para além do poder, do terreno. Então decide sair de casa a ver se acalma o coração. Na rua encontra Adílio, já alegre, barba por aparar, muito janota e vaidoso tal um suíço português da província, e juntos vão beber como dois pedaços de gelo quentes a um bar de estrelas notívagas onde o infortúnio abraça normalmente com violência os notívagos como caixa de pandora que se abre para fechar. Eles são velhos, novos, solteiros, casados, pais e filhos, vadios, equídeos solitários. A noite estava púrpura, as sombras floresciam, tudo de bolso cheio e vazio, Adílio gesticulava, não parava de mexer os braços e as mãos.

- Que estás a escrever?

- Um drama, uma história de amor, como a do meu pai que só pensa em dinheiro em que o protagonista principal apaixonado por uma deusa intocável suicida-se no fim.

- Endoideceste!

- Que queres… querias a história do fugitivo no pátio das cantigas, ou a do génio bêbado de coração fechado enlouquecido angustiado como "O Último Homem No Dôme"! Ah… o arco da escravatura sentado num bar…

- Não te conhecia esse sentido de humor!





Em meados de Setembro Francisca recuara numa relação que começava a densificar-se, tornando mais escassos os afetos que trocavam on line às escondidas do mundo.

Francisca privilegiava as aparências e havia vestígios da sua relação com o companheiro Belmiro, homem apatacado cujo comportamento provinciano desleixado e distante destituído de boas maneiras e sensibilidade tal como reza a miserável lenda dos ursos pardos lhe desagradava, exposta na internet. Assim como cumplicidades económicas somente do domínio dos dois, e que ela havia revelado a Pedro, manifestando o seu aprisionamento e consequente descontentamento por tal situação, a que ele fechava os olhos na esperança que ela depressa rompesse, segundo ela, a penosa relação que mantinha com o tal homem ausente, tal o prometido, ainda segundo Francisca, o outro, naturalmente.

Embora Pedro a amasse apaixonadamente e a desejasse ardentemente, e ela sentisse a mesma coisa, e à volta houvesse uma aureola onde tudo poderia encaixar perfeitamente, ela começou a parecer distante. Ele mais apaixonado que nunca, mais dado ao amor.

Pedro é um rapaz urbano do campo sofisticado muito generoso, tanto quanto inocente.

Uns meses antes Pedro falara-lhe da sua situação. Abriu-se ingenuamente às perguntas que ela lhe fazia, tateando o caminho. A meu ver esse foi o momento que destruiu o seu interesse por ele, visto Pedro encontrar-se numa situação economicamente delicada fruto de um desemprego prolongado forçado pela doença cardiovascular que o vitimara, nesta altura perfeitamente controlada e vigiada, mas ainda assim motivo de marginalização por parte de uma população maioritariamente materialista manifestamente mal informada, sobrepondo-se à magia do amor. Ainda assim apostado em mostrar veementemente a força da sua juventude de meia idade...

- Ela é um sonho de mulher. Eu, apesar da idade e dos desgostos da vida, ainda acredito no amor.

Como era de esperar. Inocente, capaz de dar a própria vida pela sua amada. Apesar dos anos continua com o mesmo espírito, poético e aventureiro, e que sempre lhe reconhecemos, agora mais comedido, mais assente em alicerces que considero fundamentais, mas igualmente fácil de levar por causa da sua educação, e do seu coração enorme. Pedro é o que podemos chamar de um homem de bem. Um elemento de boa fé.

Mas não foi assim que em finais de Dezembro desse ano reagiu à publicação de um vídeo realizado e publicado por Francisca com memórias ilustrativas de um ano inexistente que não demoraria a acabar interrompendo tudo o que haviam conquistado até aí. E eram raros os dias que ela não lhe telefonava, e eram várias as mensagens que trocavam diariamente nas nuvens.

Às vezes era como se vivessem juntos a maior história de amor carnal e arrebatadora tal eram as cumplicidades, os cuidados, os mimos partilhados de manhã à noite. Ele sentia-a tão próxima de si que, muitas vezes sentia o seu calor aquecer-lhe a alma.


Por vezes, quase me encanto com a inocência, mas, vejo-me obrigado a manter a distância. Já agora...


Beatriz:
- Ias dizendo...

Lucas:
- Que tens razão. Esta dor é inútil.

- Como te entendo, os meus hábitos são já ingleses, mas aqui sinto uma paz...

- Enganas-te cara amiga, esta terra é pequena, preconceituosa, maligna e muito arrogante.

- Percebo. Em Londres tenho saudade disto, quando cá estou morro de tédio.

- Então somos dois, não estamos bem em lugar nenhum.

- Não era exatamente esta vida que tinha em mente. Lá é de casa para o trabalho...

- Interagimos nas redes sociais, contudo na realidade, vive-se embriagado, semiadormecido.

- Voltados para dentro.

- É como se a vida ficasse em cascos de rolha. A vida londrina é asfixiante.

- Aqui é uma maldição, se bem que...

O silencio toma conta do ar e Beatriz levanta-se repentinamente...

Beatriz:
- Não vamos deixar que a solidão vença as nossas almas.

Lucas:
- Claro que não, mas, que o streaming da sombra paira no ar...

Lucas levanta-se fita-a e...

- Deixa-me olhar para ti. Estás muito bonita.

Beatriz cora, agradece, e direciona a conversa noutro sentido.

- O trabalho no hospital tem sido uma experiência marcante. Não é somente na aparência que os ingleses são diferentes, são charmosos, roqueiros como tu, admiro o hábito sagrado do five o´clock tea, são de facto um pouco loucos, mas no meio de toda aquela loucura e conservadorismo há muita sensatez e abertura.

- São malucos.

- Talvez. Tenho acompanhado o teu trabalho pela internet, tens feito um bom trabalho.

- Obrigada, sempre gentil e querida. E tu, continuas com um sorriso maravilhoso.

- Tens a certeza!

- Sem dúvida sexy.

- Não me queres levar para a cama pois não?

- Está cá um calor...

- Continuas cómico, tens um belo sentido de humor.

- Não sei...



No bar escolhido por Joaquim e Adílio cheio até mais não onde os dois amigos se encontram a beber o som da música invulgar canta os pássaros, agita a noite estimulando o sistema sensorial, no ar sente-se um burburinho, excitação, ouvem-se risos, frases entrecortadas pelo tom da música, há sarcasmo, cinismo, doçura, inocência malvadez profundidade e leveza a animar aquele lugar, poético, repleto de excentricidade, num ambiente intimista, de uma natureza, sobretudo escapatória, tomando conta da sala iluminada com tiras de luz led em êxtase com nuances e requintes idílicos, de libertação, com detalhes exuberantes onde os dois amigos de pé ao balcão bebem como dois condenados.

Adílio:
- Queres coca…

Joaquim:
- O quê! Essa porcaria... daqui a nada tens um curto circuito e deixas-me a falar sozinho para o espetro da rainha da Inglaterra desfigurada indiferente ao vazio da própria sombra bebendo água em sofrimento. Francamente… hoje como és tu que pagas bebo Bowmore. Chega-me Bowmore. Havia de te cair o nariz.

- Ah... também viraste beto!

- Estás a ver aqui algum Alberto! Não me chames nomes feios, sou Joaquim de batismo e tenho pouquíssima consideração por toda a droga do inferno.

- Tu és o senhor prefeito.

- Por acaso sou mais defeituoso que a tua irmã. A anatomia não me quer bem e nem falo do coração, que me trai a toda a hora, além do mais dispenso a eucaristia dominical. Ah, tu ao domingo és um ferrinho.

- Lucravas mais se fosses mais social.

- Ó meu amigo… tu muito gostas de me contar histórias, esta cidade… tens o nariz todo branco, ó senhora minha nossa senhora… limpa essa merda pá… 

- Pronto pronto…, mas vais ter de mudar o final da história para um mais feliz e comercial. Ou vais mesmo arrancar o coração ao protagonista e sujar o livro todo de sangue? É que já ninguém compra livros com finais infelizes.

- Oh…


A propósito... antes de voltar à história de Pedro e Francisca preciso, de um cigarro.


Certo dia Pedro e Francisca falaram de algumas barreiras nos seus caminhos, mas decidiram que o mais importante seria sempre o amor, a união. Falaram dos corpos que, entretanto haviam começado a mudar com a idade, da própria idade que poderia ridicularizar o amor, o que não é salutar e convenhamos, natural, falaram das diferenças socioeconómicas e culturais entre os dois, e que ela na tentativa de lhe dar confiança ignorava, ou respondia-lhe dizendo: nem todos padecemos de preconceito, nem todos trocamos a vida por dinheiro, nem todos somos assim. o que não seria de todo real, mas, convincente.

Creio que para muitas coisas da vida a idade não existe, a fealdade não deveria existir, especialmente para o amor.

Disse-me ele uma vez:

- Aquela mulher levanta-me os pés, fortalece-me a alma, ressuscita-me o espírito... bom, levanta-me tudo. A sua voz é de uma meiguice…

E ela disse-me uma vez:

- Ele foi o meu primeiro… ele é particularmente, especial.

Com certeza disse-lhe eu.

Foi maravilhoso ver os seus olhos sorrirem no rosto ainda fresco e tão airoso, completamente diferente do habitual.

Mas, como ia dizendo, entraram no último mês do ano por linhas travessas.

Certo dia chorou desalmadamente de tristeza por causa dos espinhos verdadeiramente desolado e gaguejante quando confrontado com o porquê da sua tristeza, desiludido pelos comportamentos manifestamente desadequados durante a breve discussão após a visualização do vídeo realizado e publicado por Francisca na sua página do Facebook, quando se dirigiu a ela em modos impróprios, ainda que com razão, incrédulo com a atitude de Francisca, como alguém ou algum brinquedo que acorda no fundo de um buraco. Nos dias que se seguiram quase-quase se matou numa profunda apatia e infelicidade, horrível, zangado com o mundo pela fome dos homens, pela violência da macaqueação dissimulando, substituindo a vida que nos faltará no fim para dizer, meu amor…

Quanto a mim, um futuro romance entre os dois poderá não ter desaparecido completamente. Os dois estão profundamente arrependidos. Pedro é normalmente um homem calmo sensível de bom senso, e no que a educação diz respeito não comete duas vezes o mesmo erro. Não ficaria admirado se um dia o amor vencesse.

Ele sentiu sempre uma necessidade premente de vida, nomeadamente de amor, como se buscasse algo parte de uma cura, ou prevenção de alguma doença, talvez maligna, que lhe possa de alguma forma amputar as pernas, o olhar dócil, e quiçá, até matar.

Em muitos lares o amor continua a ser um contrato, cumplicidades económicas, a necessidade de apresentar à sociedade uma imagem séria e tão respeitadora quanto a balada da meia noite. Noutros, a possibilidade de gerar filhos. Para o poeta o amor é um sentimento maior que se consolida sob a raiz cristalina de dois seres. Eu não sei… será a grandeza intima do poeta uma ilusão?

Quanto tempo demora um coração ferido a sarar!

Não sei, mas, ainda ontem Pedro sangrava abundantemente como se lhe tivessem roubado as cores e eu tenho as maiores dúvidas que com esta chuva a quebrar em mil pedaços vejamos nascer o sol amanhã. Quanto à oportunidade…

- No futuro tudo pode acontecer.
Disse ela.

- Ela…
Disse ele.

É curioso como nos enganamos, como um homem ferido e angustiado pode entrar em conflito interior e renegar o amor. É curioso como se ressuscita morre e volta a ressuscitar, é incrível como o amor cura qualquer coração gretado. No caso de Pedro, cicatrizou as chagas que encontrara naquela noite depois do dia em que a beleza, a alegria…


Beatriz é também ela uma mulher entre a solidão.

Beatriz:
- Não tens uma namorada?!

Lucas:
- Não... aqui e ali... veem e vão, é tudo muito frio e nada de confort... tenho falado com alguém no messenger, não sei se homem se mulher, apresenta-se como mulher, mas... nesta vida digital... às vezes parece que oiço a sua voz, serena, pausada, sensual... esquece.

Beatriz inquieta-se, levanta-se, vai à janela, volta a sentar-se no sofá, e decide revelar a Lucas...

- Vou-te revelar uma coisa, posso?

- Sim, claro.

- Essa pessoa com quem tens falado no messenger, sou eu.

- Como...! Não é possível. Tu... não acredito.

- Sim, eu...

- Porquê?!

- Calma. Tu não sabes, mas, eu sou apaixonada por ti desde que éramos adolescentes, desde o tempo em que jogávamos à bola, lembras-te?

- Maria rapaz... não posso crer... mas como...

- Um dia desapareceste...

- Sim, fui para França, depois casei e... conta-me tudo... porquê...!

- Quando encontrei o teu blogue vi o teu endereço e... fiquei curiosa, a ideia surgiu-me... quis saber como estás, como és agora... desculpa.

- A voz, que por vezes parecia ouvir ao ler as mensagens... doce, pausada, sensual... não posso crer, tu... então e tu, não tens nenhum caso...

- Tenho andado muito ocupada, como te disse, é trabalho trabalho... não queres que te conte tudo pois não!


Eu vejo-os já como cristais em chamas. Antes de voltar a Pedro e Francisca vou falar-vos um pouco de Joaquim. Tudo isto não são senão fios de humanidades, e contas, pérolas de água doce e salgada, relações humanas.



Joaquim vivia uma fase de mudanças, era agora um homem mais sentimental, as confusões barulho anárquico excentricidades e até desvarios, toda a profundidade leveza e agitação que se vive nos bares ou romarias desorientavam-no, no momento privilegiava mais do que nunca o recato, o conforto do lar, alguns eventos culturais e a natureza encantava-o, a gastronomia, a orla costeira, mas também um bom passeio pelo interior. Via-se no momento refém de uma solidão por vezes intragável, já não tinha olhos para qualquer travessia perigosa, creio que por causa do inferno, por não querer voltar para o lugar de onde veio, coisas de juventude cuja lembrança ainda hoje lhe furta o horizonte. A morte que se encontra nestas noites desmedidas de pasmaceiras num bar qualquer, de copos entre amigos da gula aborreciam-no, todo o provincianismo da cidade aborrecia-o, era já homem de muitas primaveras a braços com algumas cicatrizes e possivelmente ainda, com algumas feridas da vida, surpreendido com a chama que ainda possuía, sonhava com aquela mulher a toda a hora, e uma bela vida, de afetos, de sossego, de partilha e companheirismo, e depois segundo ele, aquela mulher, com quem tão bem se entendia durante o horário laboral, mulher por quem nutria uma grande admiração, pelas suas qualidades, por quem sentia além de um carinho especial um forte sentimento, sentimento esse desconhecido até então, que o fazia sonhar e desejar, que valia mais que a companhia de qualquer amigo, que uns copos, seria talvez uma loucura, ainda assim melhor que qualquer facilitismo, e no fundo, sonhar é o que todos precisamos, mesmo que o efeito por vezes possa ser comparado ao de uma droga. A verdade, ainda que Joaquim não o admitisse, e não pretendesse dela mais que uma boa e salutar amizade, e lá teria as suas razões, é que não a conseguia tirar da cabeça, mulher que o fascinava, e por quem se via, pela primeira vez na vida, verdadeiramente apaixonado.


Quanto a Pedro e Francisca...

Após cerca de um ano sem se falarem, após tantos quilómetros que os separaram, tantas ânsias e hesitações, após o smartphone de Pedro ter tocado e ele indulgente da cabeça aos pés fingido que não vira o nome do remetente no ecrã, tal a saudade, a vontade arrebatadora do que supunha ser as margens da sua vida…

Francisca:
- Sabes quem está a falar?

Pedro:
- Não,... não estou a ver... amo-te princesa. Anda ter comigo amor.

…e ter escutado a voz, terna doce e sensual da menina dos seus olhos, libertou-se inteiramente da tristeza que o algemara ao fundo do poço das traves desde a data em que deixaram de se corresponderem, pena profunda que o esmagava, tristeza que sem perceber ostentava no rosto cerrado de negrume que a sua alma apesar das puas cravadas ainda pura, de puro-sangue espelhava. Para Pedro que nunca dera valor à sombra Francisca é a rainha, a luminosidade, e o amor é o único porto de mar capaz de suprir a monotonia das sombras, o erro do individualismo exacerbado que traça a árvore pela metade. Para Pedro o amor é o porto de todos os começos e recomeços, mais que o momento, que a paixão, é aperfeiçoamento, e o som encantatório dos corações, ainda joviais, deveras crepitante, inclina-se à possibilidade da felicidade suprema, da alegria, do preenchimento pelo amor que para Pedro e Francisca será sempre mais que a realização das próprias sombras.

Ele:
- Ela…

Ela:
- Ele…

Algum tempo depois acabaram irreversivelmente nos braços um do outro afetos à grandiosidade da humanidade partilhando entre doçuras a pluralidade das margens alongando a existência como dois bons amigos companheiros amantes cúmplices de hercúleos e extensos dias libidinosos, de cuidados afetivos efetivamente, deixando escapar dois rios, subtis, ladinos, diria, sem qualquer maldade, como a poesia, legitimada pelo amor, até ao fim. Como tudo na vida tem um fim, fim que acontece por vezes quando menos se espera, e que aconteceu, naturalmente, pouco tempo depois.


Em casa de Lucas Beatriz amanheceu na cama de casal Veneza depois de uma boa noite e um sono reparador. Pela manhã Lucas dirigiu-se a ela levando-lhe o pequeno almoço numa bandeja de porcelana branca com fio dourado e um belíssimo buquê de rosas de onde sobressaía… saliento um beijo, uma luz imaculada e uma rosa de aroma atraente muito mimosa e bela, encarnada.

O amor é uma luz ecoando bem-me-queres, um cuidado, e é um fio de água que se escoa. E por falar no coração, o amor não se procura, acontece.

Olá Já Encontraste o Amor, Alberto Moreira Ferreira 


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